Crônicas

“A tutela do corpo"
Claudio Julio Tognolli  - 23 de Junho de 2011 às 18:04

                Uma das maiores lutas de toda a humanidade tem sido aquele estado de bem-aventurança, do qual somos todos postulantes, que é ter o corpo como templo inalienável de cada um – e, igualmente, ter no Estado o maior inimigo do livre-arbítrio. Não é para menos que o Congresso norte-americano tem como o livro mais importante da humanidade, aprés-Bíblia,o incensado “Atlas Shrugged”, de Ayn Rand -- traduzido para o português, às expensas do Instituto Millenium ,como “A revolta de Atlas”. Na obra, veja você, todo aquele que faz fortuna, pela livre iniciativa, terça batalhas com sindicalistas enlouquecidos --que, sem opções outras, fazem com que as pessoas bem-sucedidas economicamente sejam seqüestradas da narrativa do livro. O Estado -Leviatã, de Hobbes, é o inimigo. Sempre. Amém.

                Pouco antes de morrer, o co-orientador de mestrado deste repórter, Timothy Leary, acendeu, em 1996, propositadamente, um cigarro no aeroporto de Austin, Texas: foi preso prontamente. Era mais um protesto de Leary (para quem, de resto, John Lennon compôs “Come Together”) contra a tutela do Estado sobre o corpo de cada um.

                Mas (faute-de-mieux), volta-e-meia, (ainda bem), os oxímoros da democracia nos trazem pensadores que,supomos, vieram direto da Idade Média. Gente que dispõe de computador ligado a satélite: mas pensa em termos pré-modernos. Gente que postula a tutela do corpo pelo aparelho estatal em plena revolução do DNA. É aquilo que Ernest Bloch chamava de Gleichzeitigkeit der ungleichzeitigkeit, ou “contemporaneidade do não-coetâneo: Conan o bárbaro, veja você, pode estar morando a teu lado. E fazendo uso de um I-Pad 2 para retransmitir hieróglifos. Ou armagedônicos sinais de “Uga Uga!!!”.

                Veja você também que, nesse espírito de melánge cultural, um fantasma ronda a brasilidade. E que vai contra todo o conceito de modernidade, e de livre-arbítrio, como os conhecemos: trata-se de um retrospectivo vocacional, que atende pelo nome de Ronaldo Laranjeira. É um psiquiatra ligado à Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas), da Unifesp. OK, dirão, Laranjeira fala o que quer, pensa o que quer ,etc, porque, afinal, somos todos postulantes do mesmo estado de bem-aventurança, que é o livre- arbítrio.

                Mas, no seu entra-e-sai argumentativo, Ronaldo Laranjeira representa aquele Brasil eternamente agrário e vetusto, que nos anos 20, do século XX, Oliveira Vianna via “embranquecer-se”. Vejamos: Laranjeira publicou na Folha de S.Paulo, no ano passado, dois artigos (“Maconha, o dom de iludir”, a 22 de julho, e “Lobby da maconha” a 20 de agosto), em que se punha contra a legalização da substância --e, sobretudo, à liberação de seu uso para fins medicinais. As distorções nos artigos de Laranjeira foram apontadas em artigos posteriores de outros estudiosos, como Rafael Guimarães dos Santos (doutorando pela Universidade de Barcelona), João Menezes (UFRJ), Cidarta Ribeiro (UFRN), Stevens Rehen (UFRJ) e Juliana Pimenta (Secretaria da Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro). Os cientistas rebateram, também na mídia, os pontos da posição de Laranjeira, apontando-lhe “inconsistência”. A saber, respectivamente: “Falta ciência na discussão sobre a maconha” (22/9), “Lobby da proibição” (7/9) e “Ciência e fraude no debate da maconha” (30/7).

                Tais articulistas referiam que Laranjeira supostamente divulga imprecisões científicas e distorceria, propositadamente, conclusões de estudos, com (sic) o objetivo de associar a maconha à depressão e insuficiência respiratória.

                Ultimamente, Laranjeira vem atacando o ex-presidente FHC ,em sua luta pela descriminalização da maconha, o STF, em sua decisão de liberar a marcha da maconha e, sobretudo, o filósofo gaúcho Denis Lerrer Rosenfield –de resto, o maior vocalizador, no Brasil, da idéia de que o Estado-Leviatã não pode intervir, jamais, na vida privada dos cidadãos.

                Há quase dois meses, as Páginas Amarelas, da revista Veja, entrevistaram Rosenfield -- justamente pela sua intimorata e contínua disposição em atacar um Estado medieval ( típico de Dom João Charuto), que poda o indivíduo de escolher o que consumir, o que fumar, o que beber. “A tentativa de proibir a publicidade de cigarro, de bebida e de alimentos parece inofensiva, mas sem publicidade a imprensa se torna dependente do Governo, o que compromete a liberdade de expressão”, notou Roselfield à Veja.

                Ultimamente, Laranjeira tem atacado, como um Torquemada ensandecido e reencarnado, a necessidade que cada ser humano tem de consumir o álcool que lhe der na veneta. “O que está acontecendo é um seqüestro dos símbolos nacionais para vender cerveja”, afirmou Laranjeira. Vale lembrar que, já em 1995, Laranjeira participava da campanha da Prefeitura de São Paulo, contra o fumo, na gestão de Paulo Maluf. É o profeta da tutela.

                Tentando obter espaço com colunistas, digamos, mais ao centro, Laranjeira escreveu a Reinaldo Azevedo, de Veja, referindo que “um grupo significativo de pessoas, como FHC, Globo, jornalistas, parte do Judiciário e o lobby da maconha vão querer fazer história”. Ou seja: eu, você, o diabo, queremos fazer história às expensas da defesa da liberdade individual. Ainda bem.
               
                Parabéns ao doutor Laranjeira, que conseguiu seu título num país em que 50 milhões de pessoas mal conseguem, como diz o vulgo, fazer uma letra “o” com a ajuda de um copo. Mas o que o doutor Laranjeira vindica, contemporaneamente falando, é pré-coerente: a a tutela do Estado sobre o corpo, sobre a mente e sobre a vontade de cada um de rimar “lé” com “cré”.

                Em seu “Totem e Tabu”, Sigmund Freud deixa claro que a palavra “taboo” (que em polinésio significa “aquilo que não pode ser tocado”) dispõe de correlatos em vários idiomas e culturas: “kadesh”, em hebraico, “ayos”, em grego, e “sacer”, em latim (de onde deriva o nosso vocábulo “sacerdócio”). Este repórter teve o privilégio de obter de Timothy Leary, em sua casa, em Beverly Hills, Los Angeles, a sua última entrevista, no leito de morte. Leary falava que a humanidade (como nos ciclos do napolitano Giambattista Vico, ou no “eterno retorno”, de Nietzsche, ou no “retorno do recalcado”, de Freud), sempre irá re-vivenciar três tabus: o do sexo, o da religião e o das drogas. Doutor Laranjeira trabalha em prol da manutenção de tabus que precisam, por força de época, e ao contrário do que ele pensa, tornarem-se acessíveis (veja você que, ainda em polinésio, o contrário de “taboo” é “noa”, que significa justamente “acessibilidade”). Todo o que luta pelo “não-acessível” é um profeta do anti-tempo.

                Quase a força de fórceps uma sociedade rompe um tabu. Vale lembrar: em 1611, na hoje Alemanha, o governo premiava delatores de quem tomava café. Na Prússia, o senhor Waldeck, um capitão-tenente local, dava dez “tallers” a quem denunciasse um bebedor de café –cujos bens seriam sumariamente confiscados pelo Estado. Nota o estudioso espanhol Antonio Escohotado: na Rússia, durante meio século, beber café foi um crime punido com tortura e mutilação das orelhas. Fumar tabaco causava a excomunhão entre católicos e a amputação de membros, na Turquia e na Pérsia. A erva-mate, copyright gaúcho, era tida e havida como beberagem diabólica no sul da América –e, paradoxalmente, coube a jesuítas mostrarem que as sementes do mate não foram trazidas à América por Satã ele mesmo, mas por São Tomás. Mas as vontades dos corpos libertos de tutelas acabou vencendo.

                Senhor Laranjeira: saiba que perdoa-se o pecador: mas jamais o pregador.

fonte:
http://www.brasil247.com.br/pt/247/cultura/5684/A-tutela-do-corpo.htm

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